"Não importa o que fizeram com você, o mais importante é o que você vai fazer com o que fizeram com você" Sartre

domingo, 11 de setembro de 2011

A INSUFICIÊNCIA DO MÉTODO CARTESIANO NA FORMAÇÃO DE UM TEÍSMO RACIONALISTA

Artigo publicado na Revista Vox Scripturae Número XV - Número 1 - União Cristã - Abril de 2007.



ISAMEL FERREIRA*

RESUMO
O texto traz uma discussão bastante presente na teologia contemporânea relacionada à inserção do método científico cartesiano na formulação dos conceitos teológicos. Refletir as influências, os avanços significativos e os limites da relação entre ciência e fé é nossa modesta pretensão neste ensaio.
   
PALAVRAS-CHAVES
Racionalismo. Descartes. Razão. Conhecimento.

KEYWORDS
Rationalism. Descartes. Reason. Knowledge.




INTRODUÇÃO

O filósofo francês René Descartes desenvolveu um método para ser aplicado na obtenção do conhecimento. Entendendo que o conhecimento obtido pela experiência não era seguro, pois segundo Descartes, os sentidos podem nos enganar. Assim, elaborou um método que usa a razão como objeto seguro na obtenção do conhecimento, e utilizou o método para formular uma idéia sobre Deus, restringindo Deus a uma compreensão racionalista. Nos propomos a avaliar o método cartesiano quando aplicado à obtenção do conhecimento sobre Deus, entendendo que tal método é insuficiente na sua tentativa de conhecer a deidade.


MÉTODO CARTESIANO

Nas Meditações de Descartes encontramos a fundamentação teórica para o racionalismo idealista. Na tentativa de buscar alicerce seguro para poder, de forma certeira apoiar sua filosofia, Descartes inicia as Meditações relatando seus equívocos passados quando sem maiores esclarecimentos aceitou como verdade opiniões equivocadas. Não querendo cometer novamente os mesmos erros, entendeu ser necessário se desvencilhar de todas as certezas que até então concebia como verdadeiras, (...) irei me dedicar com a máxima seriedade e plena liberdade a demolir em geral todas as minhas antigas opiniões”1. Desta forma, usou a seguinte reflexão para identificar o erro (...) o menor índice de dúvida que eu nelas encontrar será suficiente para impelir-me a repelir todas”1. Descartes buscava nas suas antigas concepções o caminho para poder construir fundamentos seguros nos quais poderia desenvolver uma filosofia que tivesse como alicerce a verdade, seguindo seu método, que propunha  ao menor sinal de dúvida repelir tal possibilidade.
Os sentidos tinham sido para Descartes a forma mais certa de se conhecer, porém poderiam os sentidos nos enganar? Sim, diz Descartes. Se existe o mínimo de desconfiança na percepção da verdade por meio dos sentidos, se existe uma fagulha de dúvida, seguindo sua reflexão, deveria deixar de lado e buscar algo que fosse incapaz de ser um equívoco. Se os sentidos não são confiáveis, como acaba concluindo, supondo que as sensações que nos chegam por meio dos sentidos são deturpadas por alguma força, ou mesmo a inexistência do mundo sensível, o que pode ser confiável, de que forma poderemos obter um conhecimento seguro? Contudo, Descartes refuta para longe de si todas suas antigas opiniões, por encontrar nelas mínimas sombras de dúvidas, por menor que fossem. Seus questionamentos em relação a tudo o que tinha como verdade fora de tal forma pensado que se incomodara profundamente com tais reflexões. Percebera também a impossibilidade de voltar atrás, uma vez que havia derrubado todas as suas verdades por considerá-las duvidosas em maior ou menor proporção.
Agora, imerso em um ceticismo angustiante, em que nenhuma certeza  existi,  pois todas as verdades desmoronaram, chegou a conclusão que nada de certo existe no mundo, pois de tudo o que existe, de tudo se pode duvidar. É dessa forma que Descartes inicia a segunda meditação, porém encontra esperança de obter êxodo em sua proposta.

“Arquimedes, a fim de tirar o globo terrestre de seu lugar e transportá-lo para outro, não pedia nada mais que não fosse um ponto fixo e certo. Portanto terei o direito de alimentar grandes esperanças, se for bastante feliz para encontrar apenas uma coisa que seja segura e incontestável” 1.

Algo seguro e incontestável, esse é seu objetivo, alcançar um ponto seguro para apoiar sua filosofia. Mas, como achar um ponto seguro quando,  por meio de suas reflexões, nada fez senão refutar todas as certezas? Se a única certeza que podemos ter é a dúvida, a dúvida se torna a única certeza na qual podemos confiar. Descartes chega a uma conclusão, pode-se duvidar da existência do corpo, da exatidão dos sentidos, da existência de Deus, do mundo, dos outros seres e objetos, porém não se pode duvidar da ação de duvidar, ou seja, não se pode duvidar do fato de estarmos pensando (...) o pensamento é um atributo que me pertence; somente ele não pode ser separado de mim” 2. A própria existência é confirmada por meio do pensamento. O que somos? Somos uma coisa que pensa. O pensamento é a única pedra segura na qual se pode alicerçar  um edifício. Essa reflexão leva a sua mais famosa frase – cogito ergo sum – (penso logo existo). Somente por meio da razão se pode chegar a algo confiável.
Foi partindo dessa premissa que Descartes construiu suas reflexões, dando-se conta de ser algo além do próprio pensamento, pois, por meio do pensamento posso me perceber enquanto ser, e definir-me como tal. A imaginação, por exemplo, considerou algo tão forte, chegando ao ponto de não poder negar sua presença (...) ainda que possa suceder que as coisas que imagino não sejam verdadeiras, essa capacidade de imaginar não deixa de existir realmente em mim e faz parte do meu pensamento” 1. Da mesma forma que Descartes percebe as coisas que imagina como podendo ser equivocadas, vê que a ação de estar imaginando não pode ser negada. A possibilidade de os sentidos serem enganosos são reais, porém não podemos negar o fato de estarmos sentindo. A existência das coisas externas, como a fidelidade dos sentidos, são provadas quando sentimos, independente de querermos ou não sentir. As sensações que chegam por meio dos sentidos provam a existência do mundo sensível, pois não pertence a nós a escolha do que sentir, por exemplo: a percepção do calor ou do frio.


A PROVA DA EXISTÊNCIA DE DEUS POR MEIO DA RAZÃO

Descartes propõe que é por meio do pensamento que podemos conhecer, afirmando que o pensamento é mais seguro e confiável do que as coisas, pois mesmo que esteja enganado em relação à existência delas, não pode estar enganado em relação ao fato de estar pensando. O conhecimento é possível por meio do pensamento, sendo o ponto de partida para o conhecimento. Assim,  Descartes defende a existência de idéias inatas em nós, resultado da capacidade de conhecer que existe em nós. O exercício do pensamento nos leva à idéia de Deus, pois para Descartes, Deus existe por existir em nós a idéia de perfeição, quando não somos perfeitos; a idéia de infinito, quando somos finitos, etc. Não podemos  ser os autores dessas idéias, uma vez que não existe em nós essas qualidades. Faz-se necessário que alguém tenha colocado essas idéias em nós. Ainda, se não somos os criadores de nós mesmos, logo somos criados. Ser criado requer a existência de um criador, da mesma forma que ser imperfeito e finito requer a existência de algo perfeito e infinito (Deus é para Descartes o conjunto dessas qualidades advindas das idéias inatas).
Descartes, defendendo o teísmo a existência de um  a priori. O pensamento nos remete a idéia de Deus, confirmando sua existência pelo princípio da razão (...) seria impossível que minha natureza fosse tal como é, isto é, que eu tivesse em mim a idéia de um Deus, se Deus não existisse de fato” 1. Descartes diz ser impossível ter a idéia de Deus em sua mente, se Deus não existisse, pois a idéia de um Deus só pode existir se a mente assim conceber, uma vez que essa idéia foge da experiência.

INSUFICIÊNCIA DO RACIONALISMO CARTESIANO NA FORMULAÇÃO DA IDÉIA DE DEUS 


O pensamento cartesiano, na elaboração de seu método, propõe uma forma de obtenção segura do conhecimento, a razão. Porém, se a razão é o método seguro, ignoramos outras faculdades as quais fazem parte da estrutura humana, e que Descartes as vê como plausíveis de falhas. Para Descartes Deus é revelado à razão, sendo que a razão obedece princípios lógicos, os quais deram origem ao modelo de ciência que hoje ainda predomina como método para obtermos um conhecimento seguro. A lógica racionalista cartesiana elabora conceitos exatos até onde o entendimento humano é capaz de alcançar, pois nossa mente não é infinita, nem eterna, assim nada pode nos mostrar sobre Deus além do que nos for revelado. Se o conhecimento sobre Deus existe como resultado da capacidade de pensar que existe em nós, a razão se sobrepõe, se tornando auto-suficiente no conhecimento sobre Deus. Dessa forma, Deus se torna objeto de conhecimento da razão humana. Citamos Descartes:  

“Concebemos os corpos por intermédio da capacidade de entender que há em nós e não por intermédio da imaginação nem dos sentidos, e que não os conhecemos pelo fato  de os ver ou de tocá-los, mas apenas por concebê-los por meio do pensamento” 1.



A importância dada por Descartes ao pensamento torna-o auto-suficiente. Por meio dele o conhecimento é possível. Sendo a razão o caminho, por meio de onde se obtêm o conhecimento. A revelação divina deve se adequar aos mecanismos racionais, não podendo ser expressa ao homem de outra forma. Sendo que para Descartes as idéias inatas provam a existência de Deus na medida em que elas revelam Deus, por meio da razão. A insuficiência da teoria cartesiana no que tange seu teísmo, fica clara diante da própria limitação da razão na compreensão das idéias inatas. A mente não é capaz de compreender e elaborar idéias que não sejam vagas, quando as idéias são sobre o infinito, o perfeito, o eterno. Logo, nossa mente incapaz e finita, não pode ser o centro, por meio do qual, o conhecimento é possível. Podemos, tão somente, obter alguns conhecimentos limitados. Somente uma substância infinita, eterna, perfeita, pode ser capaz de desenvolver com clareza idéias afins. O conhecimento sobre Deus não pode estar restrito à razão, e sim no próprio Deus, sendo o conhecimento sobre a deidade um ato da vontade divina, livre, revelada ao homem.
Por fim, nossa oposição ao cartesianismo se encontra no modelo de ciência que se desenvolveu a partir de Descartes. O homem capaz de pensar Deus e o mundo, elimina Deus como fonte do conhecimento. O conhecimento sobre Deus não pode ser uma ação do homem, da vontade humana, em que negar ou afirmar sua existência é possível com a utilização do pensamento. Ao contrário, o conhecimento sobre Deus deve ser uma ação da vontade divina ao homem, independente da vontade humana, independente das faculdades humanas. Ora, como poderíamos afirmar que um excepcional encontraria Deus se adotássemos o cartesianismo como método utilizado para se obter um conhecimento seguro sobre Deus? Deus se revela ao homem, se deixa conhecer pelos homens, segundo a sua vontade, conforme seu método. A revelação divina não pode ser restrita a faculdade da razão, deve sim, ser obtida no ato da vontade humana de querer conhecer, combinada com a permissão divina de se deixar conhecer.
     A sutileza da reflexão cartesiana deve ser captada e aproveitada, mas devemos saber separar o joio do trigo. A razão nos leva a conhecermos Deus, O apostolo Pedro afirmou (...) crescei na graça e no conhecimento”1 . Mas ela é uma das formas, e não é a principal forma, pois Deus tem uma comunicação direta com a alma, espírito, ou se preferirmos, o coração humano.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.      ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 1014 p.
2.      BUENO, Silveira. Mini Dicionário: inglês-português português-inglês. São Paulo: FTA, 2000. 
3.      DESCARTES, René. Descartes – Vida e Obra: In Coleção: os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 334 p.
4.      DUROZOI, Gérard. ROUSSEL, André. Dicionário de Filosofia. Campinas: Papirus, 1999. 511 p.
5.      CHAMPLIN, Russell Norman. Enciclopédia de Bíblia, Teologia e Filosofia. São Paulo: Hagnos, 2001. v. 2, 945 p.; v. 3, 935 p.
6.      THOMPSON, Frank Charles. Bíblia de Referência Thompson. São Paulo: Vida, 1999. 


* Teólogo (EETAD, CEPEI), Acadêmico de Psicologia 8a Fase (UNESC), Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Filosofia ‘GEPFilosofia’
1 DESCARTES, René. Meditações, 1999. p 249.

1Descartes, 1999, p. 250.
1 DESCARTES, René. 1999. p. 257.
2 DESCARTES, René.  pp. 260-1
1 DESCARTES, René.1999.  p 263.
1 DESCARTES, René. 1999.  p 289.
1 DESCARTES, René. 1999. p 268.
1 II Pedro 3:18

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